30 anos da morte de Ayrton Senna. Diz a lenda que, quando pilotava um carro, Ayrton Senna entrava em um transe místico que o levava a dirigir de forma mágica, sobrenatural, implausível e tecnicamente impossível, e esse é um dos motivos que o tornaram uma lenda, dentro e fora das pistas da Fórmula 1.
Faz 30 anos que o homem que elevou o conceito da palavra “piloto” a um novo patamar, a um nível sem precedentes, faleceu na curva Tamburello do circuito Enzo e Dino Ferrari em Ímola. Três décadas depois daquele 1º de maio de 1994, Ayrton Senna ainda é, e cada vez mais, uma lenda.
Mas como Senna ainda preserva essa imagem quase intacta numa sociedade imediatista? Com novos ídolos surgindo, com seus recordes sendo quebrados, como Ayrton permanece no pensamento dos fãs de Fórmula 1? Por que ele ainda é considerado o melhor de todos os tempos por muitos?
Os motivos dessa adoração por um piloto que morreu no milênio passado, que não conheceu a Internet, baseiam-se em tudo o que ele fez, em tudo o que poderia ter feito, mas, acima de tudo, em como ele fez.
Sua personalidade, seu misticismo, sua filosofia de vida e de pista (que andavam juntas, mas não se misturavam), seu caráter generoso com alguns e implacável com outros, sua maneira de humilhar os rivais e seu desejo insaciável de vitória fazem parte do personagem, mas o que realmente fez dele uma lenda foi sua pilotagem fora de série em uma época em que havia muitos grandes rivais na F1, e como ele conseguiu se destacar entre todos eles.
Demolindo os rivais
A pilotagem e o efeito de Ayrton Senna na Fórmula 1 podem ser exemplificados por uma anedota contada por Jo Ramirez, que foi coordenador da equipe McLaren por mais de duas décadas e amigo íntimo do paulista, nascido em 21 de março de 1960.
Jo Ramirez relembra o Grande Prêmio de Mônaco de 1988. Ayrton Senna era recém-chegado à equipe, comandada pelo lendário Alain Prost, já bicampeão mundial e vencedor no Principado nos três anos anteriores.
Era apenas o terceiro GP da temporada, Senna saiu do carro depois de sua tentativa de volta mais rápida, a famosa “volta voadora”, e sentou-se ao lado do caminhão da equipe, ainda imerso no estado de abstração que ele tinha antes, durante e após entrar no carro. Parecia que seu espírito estava em outro lugar.
Alain Prost não conseguia acreditar. Ele pesquisou a telemetria, vasculhou os relatórios e perguntou a Jo Ramirez: Onde ele poderia ter conseguido tirar esse tempo de mim? O culpado pela tribulação do grande piloto francês foi Ayrton Senna.
A confusão e a descrença do homem que havia vencido o Grande Prêmio de Mônaco três vezes consecutivas foram causadas pelo 1,427 segundo que seu companheiro de equipe brasileiro tinha de vantagem na classificação para a corrida.
Diferença fora do comum para um “aspirante”
Sim, um segundo e 427 milésimos entre o primeiro e o segundo lugar em carros idênticos. Na F1, um décimo de segundo é uma distância razoável, dois ou três são suportáveis, quatro décimos a um segundo é uma vida inteira, portanto, quase um segundo e meio é uma eternidade.
Enquanto Prost ainda estava em choque e pedia explicações a Ramirez, Jo pôde ver pelo caminhão da McLaren que Senna, que estaca atrás de Alain, balançou a cabeça em seu transe e piscou para o coordenador mexicano com um sorriso malicioso.
Ayrton Senna gostava não apenas de vencer seus rivais, mas também de humilhá-los. E todos nós sabemos que, no automobilismo, seu companheiro de equipe é seu primeiro e principal rival.
Sua pilotagem era sobrenatural
Muito já foi dito e escrito sobre o estilo de pilotagem de Ayrton Senna. Como e por que ele era tão rápido. E há várias teorias sobre isso.
Primeiro, era sua maneira de fazer curvas. Se você prestar atenção aos vídeos de Senna, em comparação aos de outros pilotos fazendo a mesma curva, poderá ouvir e ver como ele, de alguma forma, aumentava as rotações o motor quando reduzia a marcha na entrada da curva e acelerava durante o ápice dela para manter as rotações altas e sair para a reta mais rápido do que o resto dos pilotos.
Enquanto fazia curvas, ele reduzia e aumentava a velocidade, reduzia e aumentava a marcha, acionava os freios, mas sempre com a máquina girando
Prost me dizia: “Eu não consigo fazer isso!”, diz Jo Ramirez.
Técnica apurada de pilotagem
Explicar isso em termos anatômicos significaria que, para fazer essas manobras, era necessário um ser humano com três braços e três pernas.
Isso porque, ao mesmo tempo, em que ele pisava no acelerador para aumentar as rotações, ele pisava na embreagem para trocar de marcha e freava (para isso, usava os dedos do pé, calcanhar), mas, devido à precisão e à força da manobra, parecia que ele tinha outra perna.
Na parte superior do tronco não era diferente, lembre-se de que esses carros não tinham direção hidráulica.
Era um volante duro, sem muitos controles e uma alavanca de câmbio em forma de H (até 1991), e, portanto, sequencial, que exigia uma mão para movê-la para cima e para baixo durante as curvas.
A eficiência de Senna fazia você pensar que ele tinha um braço extra, devido à precisão de suas curvas e à harmonia de suas trocas de marchas.
Ouvi-lo dirigir em uma reta era como ouvir uma escala de Mozart, uma sonata de motor maior que contrastava com o som arrítmico de seus contemporâneos.
Estilo do carro dançante
Mas era especialmente nas curvas que a “dança” de seu carro era uma marca registrada e irrepetível.
“Ele dirigia o carro de uma forma (oversteering) que parecia que ele estava dançando em cada curva”, diz Jo Ramirez.
Oversteering é um termo que se refere à técnica de levar o carro além do seu limite, e depois trazê-lo de volta ao normal, como Senna fazia várias vezes antes e depois de uma curva.
O nariz do carro tinha uma oscilação quase rítmica que correspondia a esse pequeno excesso. ,E então, ele o ‘segurava’, mas isso não o deixava mais lento, pelo contrário. E essa era a famosa ‘dança’.
O melhor classificador da história
As 65 pole positions em 161 Grandes Prêmios em sua época foram um recorde na F1, embora hoje estejam muito longe das 104 de Lewis Hamilton ou das 68 de Michael Schumacher.
A porcentagem de pole position de Senna por corrida é de 40,37%, perdendo apenas para Juan Manuel Fangio (56,68%), Jim Clark (45,83%) e Alberto Ascari (43,75%).
Vinte desses 65 foram em carros notoriamente inferiores aos da marca mais potente da época, o manuseio descrito acima, seu foco e sensibilidade o colocaram à frente dos demais.
Não se tratava apenas de habilidade ou conhecimento, mas de compreensão do “espírito” da máquina, dos pneus, do asfalto e do circuito.
“Nunca houve um piloto melhor em uma volta inteira de pilotagem”, disse Jo Ramirez, “ele entrava em transe”.
“Quando Schumacher quebrou o recorde de Senna, ele disse que não significava nada, que estava triste, porque aquele recorde era de Ayrton, e eu o agradeci pessoalmente.”
Dirigindo na chuva
Entre outros tantos, o Grande Prêmio de Mônaco em 1984 e Donington em 1993 são alguns dos mais lendários da carreira de Senna. Neles, a desvantagem de seus carros foi apagada pela água que caía do céu.
A lenda do ‘Mágico’ Senna começou a ser moldada em Mônaco, em 1984, quando, ao volante de um fraco carro da Toleman, ele fez uma demonstração de pilotagem na chuva que quase lhe deu a vitória.
Senna havia se classificado em 13º lugar entre 20 carros. E, em uma chuva torrencial, fez do limitado Toleman o carro mais rápido no circuito de rua do Principado.
Rivalidade com Prost
O brasileiro reduziu uma diferença de 48 segundos em menos de 20 voltas, até que o comissário de bordo Jacky Ickx interrompeu a corrida por insistência de Prost, que já estava com Ayrton a apenas três segundos dele. (E foi aí que começou a longa história de rivalidade entre os dois)
Nove anos mais tarde, aconteceu a famosa “Volta dos Deuses”, assim chamada pelos ‘Sennistas’ pela onipotência de Senna ao volante em Donington, o Grande Prêmio da Europa.
Naquele ano, os carros da Williams eram quase imbatíveis. A suspensão ativa e o controle de largada davam a eles uma enorme vantagem, assim como os Bennetons, que também tinham tecnologia semelhante.
A McLaren de Senna, mais limitada, só esteve novamente no nível dos outros carros na chuva.
Ao se classificar em quarto lugar, Ayrton Senna, ‘mestre da chuva’, ultrapassou Karl Wendlinger, Michael Schumacher, Damon Hill e Alain Prost logo na primeira volta, de 74 no total.
E, na segunda, já estava quatro segundos à frente deles.
“Dirigia um Fórmula 1 como se fosse um carro de rali ou um kart”, disse Ramirez à ESPN.
A intuição para encontrar tração nas poças do circuito inglês foi descrita por Jo Ramirez como “as duas melhores voltas da história da Fórmula 1”.
A verdade é que esse GP foi banhado por uma chuva inconstante, mas forte, que causou abandonos e muitas paradas nos boxes (Prost fez 7).
Mas, no final, a tabela de resultados mostrava Senna 1 minuto e 23 segundos à frente do segundo colocado, que era Hill, o único a terminar a corrida na mesma volta que o brasileiro. Ele tinha uma, duas ou até quatro voltas a menos que os demais.
Ele era humano, cometeu erros, mas foram lendários.
Senna cometeu erros, ele era um ser humano. Entretanto, mesmo seus enganos também se tornaram momentos inesquecíveis e lendários.
No GP de Mônaco de 1988, onde se classificou na pole com quase um segundo e meio de vantagem para Prost, estabeleceu um ritmo tão forte que deu volta em todos os carros, exceto quatro.
E, mesmo assim, nunca diminuiu o ritmo, e parecia querer ultrapassar novamente todos seus adversários, que já estavam para trás.
Faltando 14 voltas para o final, o chefe da McLaren, Ron Dennis, pediu que ele diminuísse o ritmo e, a princípio, ele não o fez, mas logo obedeceu. C
om uma vantagem tão grande, a corrida tinha que ser administrada, mas ele acabou batendo em Portier. Desconsolado, foi se esconder da imprensa em seu apartamento em Mônaco.
Algumas horas depois, ele diria que estava tão concentrado que o telefonema de Dennis o tirou do foco, e foi por isso que ele bateu.
No Grande Prêmio da Alemanha de 1991, Senna cometeu um erro infantil na primeira volta, quando rodou com o carro, mas compensou, com uma incrível recuperação da 27ª para a quarta posição.
E, no final da corrida, disse alegremente, como lembra Jo Ramirez, que aquela tinha sido a melhor de sua vida.
Também são famosos seus choques com Prost no Japão, que marcaram a inimizade entre os dois e mostraram um Senna capaz de fazer justiça com as próprias mãos, independentemente da lisura da ação. Ayrton se vingou do que aconteceu em Suzuka em 1989 com um acidente em 1990. Ninguém nunca disse que Ayrton era um santo.
Respeito e ódio de seus rivais, até mesmo de lendas
Todos que correram contra Senna e o enfrentaram nas pistas desenvolveram sentimentos mistos fortíssimos pelo brasileiro, combinações como: frustração-admiração, ódio-respeito, descrença-entusiasmo.
Senna conquistou o respeito de seu ídolo, o mestre e multicampeão argentino Juan Manuel Fangio, que o ungiu como seu sucessor.
Mas ele também é adorado e idolatrado por pilotos do passado e do presente, como os atuais Lewis Hamilton, Sergio Pérez, Fernando Alonso, Daniel Ricciardo, Pierre Gasly e Charles Leclerc.
Muitos deles não o viram correr, ou mesmo ainda não eram nascidos quando ele morreu, mas o brasileiro é, sem dúvidas, a inspiração deles.
De outras gerações, o próprio Michael Schumacher, além de outros nomes como Adrian Fernandez e Juan Pablo Montoya (ou seu filho Sebastian Montoya, que agora é um adolescente na F3), são todos sennistas de coração.
O próprio Prost, depois de aposentado, fez as pazes com Senna e foi um dos que mais chorou em seu funeral. Ele carregou uma das alças do caixão e reconheceu que sua grandeza estava intimamente ligada à do piloto paulista.
Você só é tão bom quanto os rivais que venceu e quanto a maneira como o fez. Senna não teria sido uma lenda sem Prost, Lauda, Nelson Piquet, Nigel Mansell, Berger, Alesi, Alboreto, Rosberg, De Angelis, Laffite, Arnoux, Patrese e, é claro, o grande Michael Schumacher.
E também não seria um mito se não tivesse humilhado todos eles.
A morte de Senna privou o mundo de ver um intenso duelo de alta qualidade contra Schumacher, que teria se estendido, talvez, por toda a década de 1990. E por isso, certamente, os campeões daqueles anos teriam que ‘ceder’ suas coroas a Ayrton.
30 anos da morte de Ayrton Senna
Hoje, 30 anos depois de sua morte, os pilotos atuais ainda usam as famosas frases de Senna, como “o segundo lugar é o primeiro dos perdedores” ou “você não é mais um piloto se vê uma brecha e não avança por ela”. Sua personalidade também fez do brasileiro um mito.
Além de tudo isso, outro detalhe que mostra a grandeza da lenda de Senna é que seus números, que não são mais recordes na F1, ainda assim têm um significado especial para os pilotos que os alcançam.
Chegar a 161 Grandes Prêmios, 41 vitórias ou 65 pole positions coloca um piloto dentro da “Estratosfera Senna”, e isso foi motivo de lágrimas para Schumacher e Hamilton, este último, tão apaixonado por Senna que agora é até cidadão brasileiro.
Com toda essa imagem folclórica que cerca o brasileiro, poder dirigir um carro que foi de Senna em algum momento, por exemplo, é um dos pontos altos da vida de muitos pilotos.
Tudo isso somado, sejam os números, a performance, ou mesmo o que vai além da explicação, a magia, o misticismo e o lado anímico e lendário de suas corridas, ajuda a explicar, mesmo que talvez ainda não por completo, porque o piloto brasileiro ainda recebe reverências de todas as gerações anteriores, concomitantes ou posteriores a si.
Ele sabia vencer, mas, além de tudo, sabia como vencer. Sabia ser brasileiro, e gostava disso mais do que tudo.
E, por isso, ainda haverá muitos campeões da Fórmula 1, mas apenas uma lenda, eternamente jovem, Ayrton Senna, do Brasil.
Corrida em Ímola tem homenagens
O GP da Emilia-Romagna da F1, realizado no domingo (19) no circuito de Ímola, na Itália, foi marcado por homenagens a Ayrton Senna. Foi nessa pista, o autódromo Enzo e Dino Ferrari, que o piloto brasileiro morreu, em 1994, em acidente que completou 30 anos no início deste mês.
Antes da corrida, Sebastian Vettel, guiou a McLaren MP4/8, carro usado por Senna em sua última temporada na escuderia britânica, em 1993. O alemão usava um capacete estilizado em referência ao conhecido acessório do tricampeão mundial.
O macacão e a balaclava tinham estampas semelhantes. E Vettel dirigiu o monoposto carregando uma bandeira do Brasil -exibiu também uma da Áustria, em referência a Roland Ratzenberger, outro piloto que morreu há três décadas, no mesmo circuito.
Manobras com um Formula 1
Ovacionado pelo público em Ímola, Vettel fez manobras performáticas com o carro depois de ter cruzado a reta final. Ele ainda visitou o espaço do complexo do autódromo onde está uma estátua em tributo a Ayrton, que virou um ponto turístico da cidade.
“Foi um momento incrível. Estar aqui, 30 anos depois, guiando o carro, lembrando Ayrton e também Roland, é muito emocionante. Quando peguei a bandeira, a galera explodiu. Muitas emoções. Foi muito especial, um dos momentos mais emocionantes que já tive atrás de um volante”, afirmou o tetracampeão mundial.
Vettel, que deixou a F1 em 2022, participou de outras ações da programação do GP da Emilia-Romagna em memória de Senna e Ratzenberger.
Na quinta-feira (16), houve uma corrida a pé pela pista, na qual boa parte dos pilotos atuais do grid estiveram com capacetes nas cores do de Senna e munhequeiras nas cores da bandeira austríaca.
Na ocasião, chamou a atenção o fato de o holandês Max Verstappen não ter vestido a camiseta criada pelo Instituto Ayrton Senna para a ocasião.
Surgiram versões conflitantes para justificar a imagem, na qual o atual tricampeão mundial ajuda a segurar a bandeira do Brasil, mas ficou claro que foi uma opção dele não se juntar aos demais com a roupa.
Verstappen é genro do brasileiro Nelson Piquet, também tricampeão mundial, rival histórico de Senna. E igualou justamente no GP da Emilia-Romagna um recorde de Ayrton na F1: oito “pole positions” consecutivas. “Eu me sinto honrado. De certa forma, é um jeito de homenageá-lo.”
Fonte: José Antonio Cortés, de Los Angeles (EUA)
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